sábado, 16 de abril de 2011

Retrato do artista enquanto marido.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Retrato do artista enquanto marido.                     
O artista tem de vencer incontáveis obstáculos na perseguição do seu destino. A busca por um mundo próprio, o apuramento da forma, a ânsia do reconhecimento, o duelo com as expectativas, o silêncio das musas, a persistência num método, a crítica e a auto-crítica, um sem fim de medos, bloqueios, desejos e outros perversos ardis da consciência.
Nenhum, porém, lhe dá mais luta do que a vida conjugal.
Em matéria de relações amorosas, o artista só colhe benefícios durante os primeiros meses. A novel companheira é, então, uma presa que ele atrai com versos grandiloquentes, observações sensíveis do mundo, citações avulsas polvilhando conversas banais, visitas guiadas a territórios sagrados de cultura, o desarmante sex appeal de uma obra publicada ou, mistério dos mistérios, daquela que se enche de pó nas gavetas.
São dias de glória, esses. O artista sente que tudo fez sentido: nunca ter subido a uma prancha de surf ou percorrido estradas de moto e cabelos ao vento, não ter investido na construção de uns abdominais de Hércules ou aplicado as poupanças num daqueles potentes descapotáveis com que os outros roubaram, anos a fio, toda a freguesia. Afinal, o tempo consumido entre livros, discos e filmes também serviu para trazê-lo ao objectivo supremo da espécie: o acasalamento.
Agora, a companheira apresenta-o orgulhosamente à família e às amigas. É poeta, diz, enlevada. Ou pianista, contrabaixista, pintor, fotógrafo, cineasta. Os olhos em volta contemplam-no como a uma estátua. A curiosidade sobre o que pensa sobre toda e qualquer coisa parece ilimitada.
Volvidos esses meses fulgurantes, o fascínio escorre, no entanto, pelo prodigioso ralo dos dias. Agora, o artista e a companheira vivem juntos e a arte terá de disputar taco a taco com a roupa por lavar um lugar no topo da hierarquia das urgências.
Escrever um poema ou limpar a cozinha. Pensar uma metáfora ou fazer a cama. O diálogo decisivo de um filme ou arrumar as compras. O perfil de uma personagem contra o estendal da roupa, a composição magistral contra os dejectos dos gatos, o hino triunfal contra o lixo que tem de ser posto na rua. A guitarra enfrenta o berbequim. O suplemento literário o pano do pó. O tríptico alegórico a loiça gordurenta. O neo-desconstrutivismo o ferro de engomar. O retrato pós-apocalíptico a lista de compras.
Em cima disto, o tempo para falar destas e doutras coisas. Porque já não falam. Porque o artista não ajuda em casa. Porque o artista anda muito calado. Não é, hélas, o homem com quem ela casou.
E as visitas à mãe, às amigas e às amigas que acabam de ser mães. A viagem a dois porque há muito tempo não estão sozinhos.
O processo culmina no terno desabafo dela: nunca apareço nos teus poemas / romances / canções / filmes / quadros / riscar o que não interessa. O artista pensa responder qualquer coisa menos artística, mas prefere dizê-lo abafado pelo som do aspirador.
Chegado a isto, ele pergunta-se se Schopenhauer teria as mesmas queixas. Passaria Chopin mais tempo a limpar o piano do que a tocá-lo? Quantas vezes terá Hemingway interrompido a redacção de Adeus Às Armas para recolher a roupa e fazer outra máquina?
As questões vão e vêm sem resposta. Enquanto a tarde cai e a roupa roda no tambor, os gatos pedincham comida e o homem da companhia faz a leitura do gás, o artista pensa que já não saberia viver doutra maneira. Épicos e românticos estão fora de moda; realistas e niilistas vão pelo mesmo caminho. Que resta a um artista-marido senão a doce metafísica da normalidade?
publicado por Alexandre Borges

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